Diário da Surdez: Adeus, vó
Honrar a memória da pessoa mais doce e cuidadosa - a protetora da minha infância, adolescência e vida adulta
Rezei desde os 7 anos pedindo aos céus que não tirassem minha avó de mim. Ela foi a única pessoa que JAMAIS me tratou como o incidente indesejado que fui. Pelo contrário: ela me amou, me educou e me cuidou de um jeito que fez com que a falta de todos os outros adultos que deveriam ter feito o mesmo fosse menos sentida.
Foi a vó quem comprou meu primeiro aparelho auditivo. E o segundo. E o terceiro. Tereca nunca me chamou de surda, nunca reclamou de repetir as coisas, nunca me cobrou que usasse os aparelhos e nunca se cansou de ir até o cômodo onde eu estava para me chamar. Quando voltei a ouvir, junto com o som do mar, a voz da vó era o som que eu mais queria reencontrar. Sua voz cantando “De colores” e “Mãezinha do céu” ficou gravada na minha memória auditiva e sempre recorri a essa lembrança nos momentos mais difíceis.
No dia 9 de setembro, sem falhar, ela me entregava um cartão de aniversário e fazia um bolo em formato de palhaço - só parou quando entrei na adolescência. Enfeitava a casa no Natal, na Páscoa e me levava escondida para limpar o túmulo do vô no cemitério. Sempre que pegava na minha mão, ela dizia: “por que essa mão está tão grossa, minha filha?”. Sua pele era macia e seus olhos, cor de esmeralda.
Ela me levava à missa aos domingos, comprava meu material escolar todo ano e pagava o plano de saúde que me permitiu fazer dois implantes cocleares. Ela pagou minha escola, um semestre de curso de inglês, me deu dinheiro para levar na primeira viagem que fiz à Europa e me presenteou com um par de brincos de ouro quando me tornei mãe. Numa visita ao Rio, na época da minha gravidez, um dia a vó me pegou pela mão e disse: “Minha filha, eu vou te dar tudo o que tu precisa para a chegada do teu filhinho”. Saiu e comprou o carrinho, a poltrona de amamentação, roupas, fraldas - e ainda disse que era para eu colocá-lo no plano de saúde dela no dia em que nascesse, pois queria dar a ele esse presente também.
Minha Tereca foi os pais presentes, amorosos e responsáveis que eu não tive. Contou histórias, protegeu a infância, deu carinho, ensinou cantigas, ensinou a rezar e a gostar de ouvir Julio Iglesias. Ela apertava minha mão quando queria me dizer algo que sua educação não lhe permitia verbalizar. Nós nos entendíamos de um jeito muito especial, sem precisar dizer nada.
Deus me deu a chance de levar a vó para conhecer o mundo duas vezes. Em 2012, partimos numa aventura linda e ficamos um mês passeando juntas pelos lugares que ela sonhava conhecer. Fomos a Lisboa, Fátima, Alcobaça, Paris, Biarritz, San Sebastián, Londres. Em Paris, dentro da Igreja da Medalha Milagrosa, tive uma visão em que meu avô se sentava ao lado dela e depois eles saíam andando de mãos dadas. A visão acabou e a vó sumiu. Fui encontrá-la debaixo de uma marquise na chuva, em frente à Igreja, dizendo que não sabia como tinha ido parar lá. Em 2017, eu e Luciano levamos a vó para Portugal. Uma noite, num show de fado, nós tomamos um porre e choramos muito na mesa do restaurante. Tenho uma foto linda, nós duas com a boa roxa de vinho gargalhando na porta na hora de ir embora.
No sábado à tarde, a médica perguntou se poderia nos ligar de vídeo. A pressão estava 5 por 3. Falei “eu te amo vó, mais que o mundo, você sempre será a pessoa que eu mais amei”. Quase partindo, ela respondeu: “eu sei, minha filha, eu sei”. E eu sei que ela sabia o tamanho do meu amor, da minha gratidão e e da saudade que vou sentir a partir de hoje.
Antes de internar no hospital, conversamos e ela me disse que estava na dúvida se faria 90 ou 92 anos em dezembro. Achava que o biso havia registrado seu nascimento junto com o de outro filho, dois anos mais tarde. Mas não tinha certeza. Tereca era um titã, sempre renascia das cinzas. Quando Lucas nasceu, pedi a Deus que a deixasse ficar conosco até ele completar dez anos. No sábado, minha dinda me disse que, na última visita do dia à UTI, ela estava falando do aniversário de 7 anos do Lucas, no mês que vem.
Acho que venho me preparando para o dia que eu mais temia há tanto tempo que, agora que aconteceu, parece que foi só um sonho ruim. Eu sabia que aconteceria porque, na primeira noite na UTI, ela sonhou que me visitava e passeava pela casa com o bisneto, que não largava a mão dela. Quando minha mãe morreu, me avisaram que um dia antes ela tinha sonhado que me visitava, também.
A morte não é nada, vó. Vou viver o que me resta aqui na Terra com a missão de honrar a sua vida e um dia te reencontrar aí do outro lado, te abraçar, sentir teu cheiro e ouvir tua voz me chamando de “minha Violetinha” de novo.
Espero que Nossa Senhora tenha te levado na direção da luz de mãos dadas, devagarinho. E que o vô Chico, a mãe, a bisa Corália e o biso Higino tenham te recebido com amor e os abraços apertados que você merecia aí no céu.
De colores se pintam las flores en la primavera…
Obrigada por tudo o que você fez por mim.
Um beijo da tua Violetinha