Diário da SURDEZ: Chute na bunda
A melhor pessoa na jornada da surdez não é aquela que passa a mão na sua cabeça
A minha melhor companhia na jornada da surdez foi a pessoa que me chutou pra frente, que disse as verdades que eu não queria ouvir e que, desde o início, deixou bem claro que não faria por mim absolutamente nada daquilo que eu era capaz de fazer.
A primeira vez em que eu entendi onde estava me metendo foi marcante. Início de namoro, início da audição biônica, eu ainda naquela vibe de ‘tadinha de mim passei por tanta coisa me deixa fazer as coisas no meu tempo blabla’. Já conseguia ouvir e entender muito bem sem leitura labial, as dificuldades iam desaparecendo uma após a outra, a vida voltando ao normal, os sons entrando. Um belo dia ele reclama: “é muito chato falar pelo whatsapp, podemos tentar uma ligação telefônica?” Gelei.
“Ah não, eu tenho trauma de telefone”.
“Entendo o trauma, mas agora você voltou a ouvir. Vamos tentar?”
“Ah não, mas eu tenho medo”
“Medo do que?”
“Medo de não entender, de ter que te pedir pra repetir”
“Se precisar repetir eu repito. Tranquilo. Vamos tentar?”
“Ah não, mas falar no telefone me dá nervoso, muitas lembranças ruins!”
“Paula, agora você ouve e entende, pode parar de dar essas desculpas esfarrapadas? Eu, hein!”
O telefone tocou, eu atendi. Meu cérebro, naquele modo de sobrevivência horroroso, esperando o pior, fez meu coração acelerar e as mãos suarem. Só que ele falava, e eu entendia tudo sem dificuldade. Passamos 45 minutos conversando sem que eu precisasse pedir nenhuma vez para que ele repetisse alguma coisa. Quando desliguei, eu me senti gigante. Se não fosse aquele chute na bunda maravilhoso, eu poderia estar até hoje presa nesse lugar de fraqueza. “Ai, eu tenho trauma”. Para desprogramar o cérebro dos traumas, a única coisa que funciona são novas experiências que desafiem o medo.
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