Diário da Surdez: O zumbido e eu
O silêncio opcional é o grande luxo da vida moderna. E quem compreende a profundidade e a beleza desse luxo somos nós, pessoas que convivem com o silêncio compulsório.
O silêncio opcional é o grande luxo da vida moderna - o que pode ser mais incrível do que poder colocar o mundo no mudo quando dá vontade? E quem compreende a profundidade e a beleza desse luxo somos nós, pessoas que convivem com o silêncio compulsório.
A obra do vizinho do apartamento ao lado acabou, mas a obra de um morador misterioso do prédio em frente continua a todo vapor. O barulho, insuportável, entra pelo janelão da cozinha e invade a casa. Às 9h em ponto a britadeira dá um bom dia incessante que vai, pelo menos, até às 10h. Pareço uma bolinha de pingue-pongue: ligo o computador às 7:30h e me sento na mesa da cozinha para tomar café da manhã e trabalhar, mas assim que a barulheira inicia recolho meus trapos e vou para a mesa do escritório. O detalhe - ruidoso, claro - é que o escritório fica de frente para uma avenida movimentada na qual ônibus, sirenes e buzinas dão o tom. A janela anti-ruído não dá conta dos decibéis que se espatifam no vidro. Para meu azar, sempre tenho pelo menos dois bons motivos para não desligar os implantes, seja a presença infantil (Lucas de férias essa semana) ou o fato de saber que o interfone vai tocar a qualquer momento por causa de alguma entrega.
O único barulho que amo é aquele que se transformou em útero com o passar dos anos: meu querido zumbido. Silêncio total não existe, porque ele marca presença sem pedir desculpa ou licença. A companhia do zumbido me faz sentir um conforto estranho. Estou aqui, inteira, viva, escutando a mim mesma e ao eco dessa voz interior que parece o som do cosmos. Meu silêncio é o reencontro com o “ommmmmm” que mora em mim. Divido a casa com ele há tanto tempo que não sei mais ser só. No meu caso, sair do barulho é como abrir a porta de casa após uma longa viagem, acender a luz e reconhecer o abraço do lar outra vez. Ouvir o zumbido é lembrar que há algo em mim que permanece sempre igual, não importa o que aconteça, desde que sou criança. Fico feliz quando penso nisso.
Quando o silêncio era compulsório, viver numa prisão com pouco estímulo me levou a projetar as sombras mais escuras no som eterno que me acompanha pela estrada da vida. Quando as portas da prisão se abriram, os sons voltaram, fizemos as pazes e entendi que sua presença foi um presente bonito: a única constância da minha jornada, repleta de caos e gritos.
Desejo que você tenha a sorte de ser amigo desse som íntimo, fiel, que vira âncora quando tudo lá fora parece querer nos dissolver. E que, quando você finalmente puder escolher o silêncio, que ele não seja ausência, mas presença absoluta de si.
Com carinho,
Paula
PS: Li por aí e fui fisgada:
“Arrogance is loud. Confidence is quiet” (A arrogância grita, a confiança é silenciosa)
MARQUE NA AGENDA:
14 de maio
21h
Google Meet mensal do Clube
Convidada especial: Dra. Sheila Vieira, fonoaudióloga Surda que Ouve, usuária de implante coclear