Fonoaudióloga Surda Que Ouve com Implante Coclear
Dra. Sheila Vieira - aka Shine Biônica para os íntimos e antigos...
Se você é das antigas por aqui, lembra da campanha de vídeos Surdos Que Ouvem, que foi patrocinada pelo Facebook quando venci o Facebook Community Leadership Program como Residente pela América Latina em 2019. Escolhi pessoas muito especiais para serem as estrelas da campanha e, entre elas, estava a Dra. Sheila Vieira. Um dos vídeos mais lindos é o dela. Sempre choro quando assisto.
Somos amigas de longa data. Fiquei babando nas fotos que ela postava enquanto estava em um merecidíssimo ano sabático ao redor do mundo. Na última vez que almoçamos juntas, ela estava prestes a fazer as malas e partir. Pisquei, e minha querida Shine Biônica já foi e voltou e agora abriu seu consultório em São Paulo para ajudar surdos que ouvem com aparelho auditivo e implante coclear.
Marque na agenda: ela é a convidada especial de maio do nosso Google Meet mensal do CLUBE DOS SURDOS QUE OUVEM. Se você ainda não é sócio do Clube, clique aqui e junte-se a nós.
14 de maio
21h
Google Meet com Dra. Sheila Vieira (link enviado para os sócios do Clube)
Para que vocês conheçam a Sheila um pouco melhor, aqui está uma entrevista com ela.
1. Quando e por que você decidiu cursar Fonoaudiologia?
A paixão pela Fonoaudiologia surgiu quando comecei os estágios do Doutorado em Distúrbios da Comunicação Humana - Fonoaudiologia. Você deve estar se perguntando, "Ué, você realizou o doutorado antes da faculdade?". É isso mesmo. Após terminar a minha pesquisa de Mestrado em Enfermagem sobre a experiência de famílias de crianças surdas com implante coclear, minha orientadora, a Profa. Dra. Giselle Dupas, sugeriu que eu fizesse o doutorado em algum programa voltado à área da surdez. Ela percebeu o quanto eu amava a área e como minha experiência pessoal com a surdez poderia contribuir com a pesquisa nesse campo do conhecimento. Ela estava certa! Foram 04 anos atendendo pacientes no Programa de Implante Coclear do Hospital São Paulo, sob supervisão da querida Profa. Dra. Brasília Chiari, uma fonoaudióloga que muito me ensinou e sempre me surpreendia com os resultados que alcançava com os pacientes. A cada atendimento que fazia com ela e com as fonos da equipe, eu ficava cada vez mais apaixonada pela profissão. Assim, ao final do doutorado, eu decidi fazer a graduação em Fonoaudiologia.
2. Houve algum desafio auditivo durante a faculdade? E como você foi recebida pelos profissionais da Fonoaudiologia sendo surda e estudante de Fono?
Na faculdade fui bem recebida e pude ter o apoio e compreensão dos professores e colegas. Eles valorizavam muito minha experiência com a surdez, foi uma turma especial! Mas assim como na enfermagem, algumas atividades que demandavam auscultar, como na disfagia, por exemplo, eu não conseguia fazer, ou entender uma fala com muita distorção. Mas algum colega acabava me ajudando nessas situações.
O mais difícil foram os dois últimos anos da faculdade, que coincidiram com a pandemia de Covid-19. O uso de máscaras e face shields exigiam muito das minhas habilidades auditivas e atenção. Saía das aulas e estágios exausta devido a fadiga auditiva e o stress envolvido. Estava difícil de fazer os testes de percepção de fala dos pacientes também. Foi quando comecei a fazer uso constante do microfone remoto sem fio para conseguir ouvir e entender a fala dos professores, colegas e pacientes, e a usar os aplicativos de transcrição instantânea da fala. Isso ajudou bastante, mas infelizmente o componente interno do meu implante coclear apresentou uma falha súbita e parou de funcionar após 21 anos de uso, bem no meio da pandemia. Agora além do som abafado causado pelas máscaras, podia ouvir apenas pela orelha esquerda (que era a minha pior) e precisaria passar pelo processo da cirurgia de reimplantação coclear. Foram 3 meses até a ativação e depois um processo longo com treinamento auditivo para ouvir bem como antes.
Por outro lado, vivenciar esses desafios foi enriquecedor também porque pude compreender melhor os meus pacientes, relembrar o quanto a surdez unilateral é desafiadora e o quão isolador e frustrante é não conseguir se comunicar bem. Também vi a importância de ampliar e incentivar o uso dos microfones remotos em sala de aula e no trabalho para um melhor aprendizado acadêmico e desempenho profissional dos adultos. Todo esse aprendizado me tornou uma profissional melhor.
3. Você é implantada há muitos anos e recentemente precisou reimplantar o IC. Pode nos contar como foi, o que você sentiu e como foi a readaptação?
Claro! Meu primeiro implante foi realizado no ouvido direito, 4 meses após a perda da minha audição em 1999, lá no Centrinho em Bauru (HRAC-USP). Em abril de 2021, ele apresentou uma falha súbita e parou de funcionar. Estava assistindo a aula da faculdade no computador e, de repente, ouvi alguns barulhinhos estranhos. Achei que o microfone do processador de fala estava dando algum problema ou fosse algo relacionado à bateria. Desliguei e religuei algumas vezes, troquei a bateria, mas o som foi ficando cada vez mais fraco e em questão de minutos, ele parou de funcionar. Então peguei o meu processador antigo e para minha surpresa ele não funcionava também. Aí percebi que poderia ser o implante interno. Foi uma sensação horrível porque era minha melhor audição, estávamos no meio da pandemia e com todas aquelas restrições hospitalares para fazer cirurgias eletivas, era meu último ano de faculdade e estava mim preparando para morar um tempo na Austrália. Como faria tudo isso sem ouvir bem?
Havia também o fato da causa da minha surdez ter sido meningite e do risco de ossificação coclear na presença dessa etiologia. Eu tinha muito medo da minha cóclea estar ossificada, de não conseguir reinserir os eletrodos ou inserir apenas parcial e meu desempenho auditivo mudar. Mas graças a Deus, a cirurgia foi com inserção total. Apesar de ter conseguido entender algumas palavras e sentenças quando ativou, o som era baixinho e a qualidade auditiva bem ruim e distorcida. Mas como eu era implantada bilateral, a outra orelha acabou se desenvolvendo muito com a privação auditiva do outro lado e me salvou. Também fiz algumas sessões de treinamento auditivo com a Profa. Brasília e com o tempo passei a aceitar e me acostumar com o novo som. Embora eu ainda não tenha a mesma qualidade sonora de antes, minha percepção da fala melhorou bastante e estou feliz com os resultados.
4. Qual é o sentimento de ser uma surda que ouve com ouvidos biônicos agora ajudando outros surdos a voltarem a ouvir?
É maravilhoso! Auxiliar pessoas no enfrentamento da surdez é como se desse sentido e propósito à minha própria perda da audição. Quando você vivencia algo, essa experiência pode ser enriquecedora para ajudar outros que estão passando por uma situação semelhante. Essa identificação e sensação de pertencimento que os pacientes e suas famílias sentem comigo é valiosa e muito encorajadora para que eles persistam em sua jornada auditiva. Nós sabemos que compartilhar experiências com outras pessoas com surdez é uma ferramenta essencial nas tomadas de decisões, incluindo a decisão de usar uma tecnologia auditiva. Cada pessoa e família que atendo e que vejo a vida transformada, faz meu trabalho ser muito gratificante. Eu amo ser uma fonoaudióloga surda que ouve! A propósito... adorei seu curso para fonoaudiólogos que trabalham com implantes e aparelhos auditivos! Acredito muito nos princípios éticos e condutas profissionais que você abordou, porque são indispensáveis para um fonoaudiólogo que quer realmente ser um guia na jornada da surdez dos seus pacientes.
5. Você tirou um ano sabático para viajar pelo mundo. Alguma experiência conectada à surdez e à audição biônica para compartilhar conosco?
Sim, várias. Conheci o centro de implante coclear de Sydney, participei do evento do World Hearing Day na Macquarie University, fiz um curso de Implante Coclear na Medel Australásia, conheci a sede da Medel australiana (que time maravilhoso!), alguns usuários de implante e profissionais da área. Também reencontrei duas amigas fonoaudiólogas queridas em Sydney e Melbourne, a Thaysa e a Zeyla, que me apresentaram os serviços em que atuam e me mostraram melhor a atuação do audiologista por lá.
Desfrutar esse ano sabático foi uma experiência enriquecedora, em que pude conhecer além da Austrália, a Nova Zelândia e 5 países do sudeste asiático com diferentes realidades culturais, socioeconômicas e de estilo de vida. E posso dizer que cada parte dessa viagem foi uma conexão com a minha surdez. Nunca me senti tão surda na vida (risos)! A realidade era essa. Ouvir em outro idioma não é fácil sendo surda. Eu sempre tive resultados excelentes com o implante, então aquela era uma situação bem diferente da que estava acostumada, auditivamente falando. Me sentia com uma surdez moderada a todo momento, tinha fadiga auditiva, e entendi melhor o que meus pacientes sentem quando têm limitações de linguagem. Precisei entregar tudo na leitura labial, no app de transcrição instantânea e no claro "Sorry, could you repeat please?!" (risos). Meu cérebro precisou trabalhar tanto que ao voltar para o Brasil, ouvir em português ficou mais fácil de novo. Mas com certeza, vivenciar esse outro lado da surdez me tornou uma melhor surda e fonoaudióloga. E mais uma vez me fez acreditar que mesmo com a surdez, os nossos sonhos podem ser possíveis sim.
6. Quais foram as grandes lições que a surdez te ensinou?
- A surdez me ensinou que o incentivo à pesquisa e ao desenvolvimento científico são muito, muito importantes. Quando eu implantei em 1999, o implante coclear era ainda um protocolo de pesquisa. E devido a essa pesquisa que tive minha vida resgatada ao ter minha audição de volta, assim como milhares de vida ao redor do mundo.
- A surdez me ensinou que o apoio da família é um dos recursos de enfrentamento mais poderosos que podemos ter para enfrentar uma deficiência. Me ensinou a ter fé e confiar em Deus, mas agir também e muito!
- A surdez me ensinou que ela pode me conectar a pessoas incríveis e me trazer oportunidades e amizades muito especiais, como a sua, que talvez não aconteceria sem ela.
- A surdez me ensinou que eu preciso participar ativamente do meu processo de inclusão e reabilitação. Preciso fazer minha parte para ter uma sociedade mais acessível. Preciso persistir, trabalhar para obter resultados e correr riscos quando necessário.
- A surdez me ensinou que a comunicação é um direito do ser humano. Que ouvir liberta, dá autonomia, independência, qualidade de vida e sentido à vida. E que precisamos lutar para garantir o acesso às tecnologias auditivas e reabilitação para todos.
Nos vemos dia 14 para bater um loooongo papo com a Sheila!
Até lá
Beijos
Paula