Nao invada o meu silêncio
Por que o silêncio incomoda tanto as pessoas quando elas estão em ambientes que envolvem espera, tédio ou interações sociais?
Quarta-feira fui a São Paulo. O Luciano tinha uma cirurgia de otosclerose para fazer no dia seguinte e me convidou para ir junto. Como era aniversário de 53 anos dele no dia da viagem, nos hospedamos num hotel maravilhoso por 24 horas, só nós dois (quem tem filho pequeno e não viaja a sós há quase 7 anos consegue imaginar o sossego).
No meu imaginário, hotéis chiques são silenciosos. Descobri que não é exatamente assim que a coisa funciona. O Luciano detesta barulho; aliás, detesta tanto que usa os AirPods no modo cancelamento de ruído sempre que sai de casa. Eu também detesto, então a questão do silêncio é algo que nóis dois observamos o tempo todo quando saímos.
Fizemos check-in e fomos explorar o hotel. Primeira parada, a piscina que parecia saída do Park Guell em Barcelona. E o que é que tinha na piscina? Aquilo que chamam de música ambiente, mas que na verdade só serve para perturbar a paz do ser humano ou fazê-lo se sentir menos só. Quem precisa de música aleatória tocando quando vive colado numa tela, conectado ao resto do mundo? Não é isso que diminui a solidão de alguém.
Tirei o implante esquerdo e entrei na piscina ouvindo, pela primeira vez em muitos anos (não, eu não uso capinha a prova d’água porque acho o som do IC preso dentro dela uma das coisas mais estranhas que já ouvi). Foi uma experiência diferente conversar na piscina ouvindo a pessoa que falava comigo, ouvir o barulho da água, me irritar com a música, ouvir as pessoas falando em inglês ao redor, o barulho dos helicópteros sobrevoando São Paulo, o barulho das folhas das árvores, os pneus dos carros passando por perto. Achei intenso. Meia hora depois, a bateria do implante acabou.
Depois da piscina fomos para a sauna do hotel. O lugar era tão perfeito que senti vontade de me mudar para o locker e nunca mais tirar o roupão, rsrs. Tirei os dois implantes, como sempre faço (dizem que pode mas eu é que não sou louca de entrar na sauna com eles) e encontrei o Luciano lá dentro. Ah, tirei os óculos também, então demorei uns 2 minutos até perceber que ele estava de cara feia. Perguntei o motivo. Ele apontou o dedo para uma caixa de som dentro da sauna que, segundo me explicou, tocava uma música horrorosa num volume considerável. “Coitado”, eu pensei mas não falei enquanto fiz um semblante de “putz” e percebi, mais uma vez, como o silêncio opcional é o supra sumo do luxo.
À noite, descemos para jantar. Fomos levados até uma mesa na área externa do restaurante, num pátio cheio de oliveiras suntosas. Assim que nos sentamos, o barulho de bate-estaca voltou. Nos olhamos e reviramos os olhos ao mesmo tempo. Quanto mais barulho, mais alto as pessoas precisam falar para que consigam se entender, e assim o ambiente vira um inferno sonoro bem desagradável. Comentei que, se tivesse dinheiro, eu mesma abriria um restaurante chamado “Silêncio”. Ele não teria wifi para que os comensais fossem obrigados a conversar e não teria música ambiente para que ninguém gritasse. Como é que ninguém pensou nisso ainda? Por que o silêncio incomoda tanto as pessoas quando elas estão em ambientes que envolvem espera, tédio ou interações sociais?
Na manhã seguinte, Luciano foi para o hospital operar e aproveitei para passar umas horas gravando vídeos. Perto do meio dia desci para a sauna. Impossível não rir sozinha enquanto observava as duas caixas de som lá dentro. Não faz o menor sentido que um local de relaxamento como esse envolva música. Se fosse ouvinte ficaria muito irritada com pessoas que conversam numa sauna cheia de estranhos. É uma invasão do espaço sonoro alheio parecida com aquela que considero a pior de todas: pessoas que levam caixas de som para a beira da praia e ligam-as no último volume, acabando com a paz geral do lugar.
Saí da sauna solitária, me estiquei numa espreguiçadeira e comecei a ler “Elis e Eu” - a história do filho mais velho da Elis Regina, que tinha 11 anos quando ela faleceu. A leitura fluiu de uma pegada só, e a última página traz uma carta que Elis escreveu para ele. Fui às lágrimas. Compartilho a carta com vocês.
"Rio, 14 de junho de 1971. J
João,
Queria era te dizer que te amo, preciso de você. Quero você mais do que tudo que já quis. Queria te dizer também que não sei como é que achava graça nas coisas antes de você surgir, porque eu sinto uma falta incrível de você. Quando não estou por perto, os troços perdem o sentido e a razão. Você me pegou um bocado daqueles, me ajeitou, construiu pacas. Você me envolveu a risada do ginásio, criou uma fonte de dinheiro, me desenvolveu a risada do ginásio, criou uma fonte de investimentos em mim nas minhas áreas menos desenvolvidas. Negócio maravilhoso sua mão no meu cabelo. A única mão que não me mete medo. Coisa linda seus olhos me olhando sério, me descobrindo até pra mim. Incrível sua boca sorrindo e falando coisas poucas, mas o suficiente para nos entendermos e sabermos que estamos em boas mãos. Quanto eu devo! Não tem o que de jeito. Você chegou e arrasou, acabou com o baile. Se por ventura eu falhar, se não estiver à sua altura, Se for menos que você acha que merecia, não me imagine mais do que sou. Tenho tantos problemas quanto você. Não me culpe. Antes, procure me compreender. Sou resultado do que a vida fez comigo, inconscientemente e inconsequentemente.
Saiba, porém, que você foi o único ser com o qual eu não fui inconsciente nem inconsequente. Pensei, medi tudo, apesar de que não sou perfeita. Bem que gostaria de tentar, mas nunca se consegue, mesmo tentando o máximo. O bacana é que sobra a todos uma vida pra consertar os erros cometidos, nesse pouco tempo e, no que depender de mim, creia, me jogo de cabeça e não te deixo em falta. Só quero que a gente sempre fale de frente, sem camuflagem, olho no olho. Esteja certo, eu nunca vou mentir, nem uma mentira piedosa. O que tiver que ser vai ser. Nem que seja ferro em brasa, mas vai. porque o que há de mais bonito é a confiança nos companheiros de briga. Fora dela, não há salvação. É o mínimo que posso fazer de verdade verdadeira com você, que me deu uma concepção nova de vida. Só me falta dizer muito obrigado por você ser tudo o que você é, por ter nascido e por você ter me dado a felicidade de dividir tão intimamente o meu corpo. Sejamos felizes, é o que eu quero. E o que há de ser meu filho. Sou tua sempre.
Mamãe."
No retorno ao Rio de Janeiro, dei muita risada enquanto ouvia os avisos de alto falante do piloto do avião. O inglês macarrônico e o sotaque carregadíssimo ajudaram a aliviar a tensão enquanto eu olhava pela janela o dilúvio que acontecia lá fora. Depois que o avião furou a tempestade e alcançou o céu bem alto, vendo a mistura lindíssima de tons de azul do firmamento e do mar, lembrei mais uma vez do poema da Emily Dickinson (tradução livre minha):
‘O cérebro é maior que o céu e mais profundo do que o oceano’.
Um beijo