colagem daqui
Tive um final de semana atípico, no meio do mato. E quando a gente é bicho da cidade grande, se acostuma com cinza e cimento, ruído e ansiedade, e acaba achando que a vida se resume a isso. Os dias passam tão rápido que entre pular da cama e voltar pra ela, parece que você só piscou o olho.
Às vezes esqueço o tamanho do presente e da mágica envolvidos no meu voltar a ouvir. Às vezes esqueço que sou surda profunda, que meus ouvidos são 'quebrados', como costumo explicar ao meu filho. A pilha acaba e a ficha cai. Nas poucas vezes em que me vejo em meio à natureza, é como se um sexto sentido despertasse e me fizesse entender os paradoxos, os entremeios e a potência da minha realidade como passageira do trem-bala "Som e silêncio".
As epifanias e os insights são muitos, e com a memória curta, anoto-os todos. Senão, me escapam.
Na minha vida, tem dois mundos. O mundo com som, e o mundo sem som. Como corro pra cá e pra lá entre eles, e assim será até o fim dos meus dias, acabei percebendo que o mundo na verdade é saber morar em si mesmo. E ser feliz desse modo. Sem som, o mundo é só você, mais ninguém. Os outros ficam trancados lá fora, ninguém entra e a gente não sai também. E quando o som volta, me sinto um pouco como o peixinho que alguém resolveu jogar de volta ao mar. Em dois segundos, um respiro.
No silêncio viro onça, que observa sem parar. E lendo as presenças ao redor com os olhos, aprendo um bocado. Pela manhã, lá no meio do mato, meu filho me acordou com beijos e abraços. Achei a atitude suspeita, quando pai está junto, os carinhos sempre são dele. Durmo e acordo sem som. Foi aí que lembrei: pode ter truque. E disse ao marido: "foi você que mandou ele fazer isso, não foi?". Dito e feito. Dormir sem ouvir é um ato de fé. Acordar sem ouvir tem dessas coisas.
Ter um filho que ouve é ouvir tudo duas vezes. Na primeira, do meu jeito, ligeiro e apressado. Na segunda, tudo vira poesia e encanto. Fitar aquele pingo de gente prestando atenção no som dos passarinhos é puro deleite. "Mamãe, piu piu. Vem ver!". Eu vou, mil vezes. E na ida, volto ao dia em que o som dos passarinhos retornou ao meu alcance. Quando o muro do silêncio é quebrado, entra tanto bicho e coisa nova que às vezes até assusta.