Quarenta anos de surdez me trouxeram uma certa arrogância no quesito “leitura de pessoas”. Tenho um algoritmo profundamente treinado em identificar o menor sinal de mentira, insegurança e falsidade nos outros por causa dos anos de silêncio. O cérebro era forçado a descobrir caminhos, desvendar pistas e desnudar tiques e alterações que me permitissem acessar o significado das expressões faciais e dos comportamentos sem som. Mas esse mesmo cérebro tende a achar, até hoje, que por ter esse conhecimento especializado, é capaz de enganar os outros.
Foi o meu filho de 6 anos que me obrigou a descer do pedestal e reconhecer que isso não é possível.
Gosto de começar o dia em silêncio, ouvindo só o velho zumbido de estimação e mais nada. Mas assim que abro os olhos pela manhã, tanto o marido quanto o filho já começam a me fazer um sinal com o dedo indicador e o dedo do meio (foto que ilustra o post), cujo significado é: “põe seu implante, por favor!”.
O sinal já virou gozação aqui em casa. Quando Lucas o usa, acabo devolvendo um punho cerrado com cara de fúria para ele. Quando Luciano o usa, faço pior: imito o sinal girando o pulso pra cima e digo que vá fazer um exame de próstata e me deixe em paz.
Voltando ao algoritmo prepotente, dia desses eu estava sozinha com a criança, que resolveu desandar a falar enquanto eu arrumava a cama. No início, não deu para perceber que o silêncio imperava. Os músculos faciais faziam malabarismo trabalhados na mentira e eu fingia compreender o que o pequeno estava dizendo enquanto esticava lençóis e edredom. Até que errei alguma reação de compreensão e fui pega no pulo.
Lucas ficou parado à minha frente, esperou que eu fizesse contato visual e falou em alto e bom som inaúdível, com movimentos labiais perfeitos:
“Eu conheço essa cara, mãe. Você não está ouvindo nada! Põe esse implante para falar comigo!”
Envergonhada, com a cara ‘na chón’, como diria aquela personagem interpretada por Aracy Balabanian em alguma novela dos anos 90, segurei o impulso de levantar o punho e desdenhar, enfiei o rabo entre as pernas e fui imediatamente até o desumidificador acordar os ouvidos biônicos.
Como é fácil ser egoísta e desrespeitoso com as pessoas da família, hein?
Um beijo,
Paula